Em 08.08.2001 eu comemorava meu sexto dia dos pais, nesse dia vivi uma das experiências mais marcantes de minha existência: o meu primeiro abandono.
Esse momento respira forte e potente aqui dentro. De certo tentei hiberná-lo o quanto pude, e quem não o faria?
Com medo da fera, nunca a visitava. Por vezes espiei-a de canto, ressabiada, verdadeiramente apavorada com a possibilidade de que acordasse, de que me atacasse e me machucasse em um único grande golpe violento. Eu sabia da periculosidade da lembrança, sempre soube. Eu sentia sua potência, sentia a vibração do seu respiro de vida antes mesmo de saber onde ela estava.
Para me defender, passei a procura-la. Sabia mais ou menos onde ela estava pois sempre que sentia sua respiração mais acelerada, lhe deixava comida, brinquedos, estímulos e tudo mais que fosse preciso para que não me causasse importuno. Aproveitava enquanto ela estava calma para construir as barreiras de proteção que me salvariam.
Começou com uma cerca viva ao redor da área que a fera habitava. Com o passar dos anos, arranquei todos os galhos da cerca num árduo trabalho em todo o perímetro do terreno: cavei com enxadas, com pás, com as unhas, com os dentes. Na cova do meu esforço estruturei a base do fechamento de alvenaria que substituiria a cerca viva, e subi cada tijolo.
Laranja, laranja, laranja. Por todo o lado, já não se via mais o verde dos arbustos e trepadeiras que nos separavam. A luz já não mais perpassava pelas folhagens, os pontos de transparência foram substituídos por pequenas aberturas no plano vertical para que assim eu pudesse vê-la, caso a curiosidade batesse. Depois de certo tempo, demoli os tijolos com marretadas, socos, pontapés, cabeçadas, e, gradualmente, o laranja passou a dar lugar a uma estrutura metálica fria e escura, com partes enferrujadas.
As mudanças estruturais não esperavam limpeza fina, o que fazia com que folhas secas, pedaços de alvenaria e ferrugem metálico se sobrepusessem numa paisagem palimpsestica de canteiro de obras com demolições muitas e construções inúmeras, para edificar o monumento que tinha um único fim: o continuum.
E lá no meio do cerco só haviam três fontes de água para a fera.
Uma delas era o suor do meu corpo advindo do esforço físico da construção que me levava à exaustão: pingava dos meus braços, do meu peito, das minhas mãos
A outra era o suor do meu corpo advindo das noites acordadas nas quais eu fervia no frio da febre. Tal dissabor era resultante da dor de garganta causada por todos os gritos não dados com medo de acordar a fera. Esse suor escorria da minha cabeça, da minha nuca, do meu cabelo.
Por último e menos frequente, a fera morreria de secura se dependesse das lágrimas que escorriam do meu rosto, pois essas eu segurava ao máximo. Não queria perder para ela, não queria saciá-la com a tristeza que ela mesma me causava. Seria fazê-la crescer com o fruto do medo de seu crescimento.
Dura foi a surpresa ao reparar a armadilha que eu mesma havia criado. O cerco em que a fera ocupava posição central, era na verdade um grande panóptico. Enquanto eu a via esporadicamente, ela me observava sempre: de todos os lados, em situações diversas. Foi num instante louco de pura sanidade, despertado pelo cheiro de meu pai em outro homem, que me percebi vigiada e, para além disso, punida na melhor narrativa foucaultiana.
E assim principiou-se o fim do sonho.