Outro dia passamos algum tempo falando sobre minha música favorita (Rebento, de Gil, cantada na década de 1970, por Elis Regina, ao som do piano de César Camargo) e, consequentemente, sobre meu fascínio pelo nascimento das coisas
O que você não sabe é que depois disso, e antes disso, eu passei muito e muito mais tempo pensando e repensando sobre isso. São horas, dias, meses, anos, i n s i s t e n t e m e n t e pensando sobre isso
O intrigante momento do Rebento sempre me volta como questão e se impõe como problema. Ele protagoniza o mistério das coisas incompreensíveis para minha cabeça, que como todas as coisas incompreensíveis, nos concedem o prazer do medo
Esta antiga obsessão – por antiga, íntima – busca nesse conglomerado de palavras escritas a sua própria morte, como já havia buscado anteriormente em outros ensaios, sempre sem sucesso. E como quem ingenuamente escreve para dar fim, dou vida a esse texto que, ironicamente, é sobre nascimento. Assim, as ideias daqui já medram fadadas ao fracasso, como um suicida frustrado que busca de forma confusa e caótica a pausa do sofrimento, e não o completo desfecho
As continuas tentativas de escrever sobre, de pensar sobre, de vivenciar, de ter o Rebento, de sofrer o Rebento, são aproximações desesperadas de mim com o meu fascínio, com o meu desejo, com o meu Eu. Para vê-los mais, e por mais, melhor. Ou talvez apenas de formas diferentes, que façam com que cesse o amedrontamento. Dentro disso – ou apesar disso –, acho divertido pensar em como medo e fascínio andam tão juntos. Assim como a vergonha e o desejo, esses pares me parecem tão unidos a ponto da morte de um, acarretar o fim do outro. Mas esse
texto não é sobre isso
Este texto é sobre instantes específicos que de tão misteriosos, não sei quanto tempo demoram – seria então esse texto sobre o tempo? – É o instante do início, do nascimento, do princípio, do surgimento, o que para os religiosos seria o instante da criação. Instante que Gil se refere sabiamente como Rebento
Este texto é sobre o momento exato em que uma coisa deixa de ser uma coisa para ser uma Coisa. Passa a ser substantivo próprio, passa a existir com a importância das coisas que merecem ser percebidas e nomeadas de forma singular. Assim, nomear atrela-se ao firmamento do Rebento no mundo, ao passo que surge da identificação de algo único. Tão único, a ponto de precisar de um nome próprio para ser tratado. Seres humanos são assim, tão únicos que além de Nome, têm Sobrenome
Isso nos leva ao meu outro grande fascínio (que se relaciona diretamente com o primeiro), nomes e Nomes. Etimologia. Pensar a lógica por trás dos nomes é incrível. Por exemplo, veja a etimologia da palavra Rebento segundo um dicionário online: “do Latim repens, súbito, inesperado, repentino. O que arrebenta (ou que rebenta; é a mesma coisa) sempre o faz de modo rápido [de repente]. Daí também os nossos “repentistas”, cantores que têm uma capacidade espantosa de criar versos em poucos segundos a partir de um dado tema.”
Gil descreve o arrebento como um trovão dentro da mata e a imensidão do som, e a imensidão do som, e a imensidão do som desse momento
Engraçado pensar que o dicionário etimológico da internet, o Gilberto Gil e o meu coração dividem algo em comum, que é a tentativa de entender esse momento. Mas entender tempo é mesmo complicado, ainda mais com palavras. Gil foi exitoso quando atrelou o tempo ao som e à luz, na comparação entre o Rebento e um trovão. A física já atrela esses fenômenos há anos, como você bem sabe
Enfim, escrevi essa grande introdução que vai de vazio à lugar nenhum (já disse no início que o texto estava fadado ao fracasso) para que você pense mais e para que eu pense mais sobre esses instantes únicos em nossas vidas, que, como eu já disse, não sabemos quanto tempo demoram, mas que valem cada segundo. Eu gosto de colecionar Rebentos, trato cada um deles com a preciosidade das coisas raras como flor na pedra e fartas como trigo ao vento [fartas aqui no sentido de que nos preenchem por inteiro]. Mais que raros, únicos e eternos, esses instantes de tempo indefinido merecem nomes à altura, e eu não economizo, parecem até nomes de reis e rainhas:
- A Primeira Lembrança De Abandono Do Meu Pai No Núcleo Educacional Ser Feliz 
- O Meu Primeiro Beijo na Rampa Do Colégio Franciscano Nossa Senhora Aparecida 
- A Viagem No Ônibus Lauzane 178L-10 Em Que Eu Percebi Que A Educação Me Move 
- A Conversa De Bar Na Rua Luiz Góis Em Que Decidi Cursar Arquitetura 
- O Verão Dos Anos 2000 Em Que Me Aproximei De Bia E Giulia Pelissari Na Praia 
- O Meu Primeiro Cigarro 
- O Primeiro Eu Te Amo Que Lembro De Ouvir Do Meu Pai No Baile De Formatura Do Colegial 
- A Morte Da Hercília Amaral Santos Prado No Hospital São Luís Aos 99 Anos
 - O Dia Que Conheci Enzo Arakaki Suzukayama Ao Lado De Uma Mesa De Ping-Pong
Todos esses Rebentos e muitos outros mais, perduram até hoje. Mesmo que o ápice já tenha se dissipado, eu tenho a certeza de que eles ecoarão aqui dentro enquanto houver vida em mim. Se eu fechar os olhos e pensar em cada um, consigo me transportar imediatamente para dentro da mata fechada em que o estrondo do trovão me atingiu, e isso me traz a tranquilidade de saber que Eu existo. Mesmo que as lembranças não sejam boas, porque não é exatamente sobre isso. Na verdade, não é sobre isso
É sobre o instante e sua imprevisibilidade e incompreensão completa. Não há controle algum nisso, não há como saber onde, quando, porque, com quem, como. Contrariando todas as estatísticas, o raio do trovão nos atinge diversas vezes durante a vida e nele, o Rebento. O renascimento de quem somos a cada vez que nos atinge, a morte da vida antes dele, seguida do inevitável banquete do que éramos e que ficará para sempre se digerindo dentro de nós. Vomitando-nos e deglutindo-nos no melhor estilo Hannibal ruminante, ou, com sorte, antropófago
É nesse clima sujo e completamente indelicado que eu quero falar sobre a existência do Dia Em Que Te Olhei Enquanto Amanhecia, na esperança de que, ao saber da existência e do Nome do instante, você tenha dimensão do lugar que passou a ocupar aqui. Isso não é uma promessa, nem um compromisso, nem um pedido, nem uma jura, nem um lamento, nem uma comemoração. É apenas um comunicado de nomeação, na qual declaro um nascido vivo
I am alive
I'm alive and vivo muito vivo, vivo, vivo