Desde o início da pandemia, fui morrendo aos poucos 
A intuição me diz que algo se perdeu nesse um ano e meio. Me sinto saudosa de mim. Parece que me encontro confusa como uma idosa que pegou o ônibus errado e, ao se perceber errada, perdeu a memória, entrou em quadro de demência.
Achou que estava em um caminho específico no 175P-10 [Ana Rosa], e que tal caminho a levaria ao ponto desejado, o mercado de flores do Largo do Arouche. Nada mais genérico do que a especificidade itinerária do Ana Rosa 175P-10: ele passava por todos os lugares que sua mente podia desejar ir. Repentinamente, se viu num lugar diferente daquele que queria estar, que pensou estar.
Ao perceber o erro sentiu medo, uma dor de cabeça forte e então se esqueceu para onde estava indo. Se esqueceu do filho que a esperava no ponto de encontro combinado, se esqueceu do jantar de aniversário de casamento para o qual comprava flores, se esqueceu que tinha marido, ou filho, ou casa, ou máquina de lavar batendo a roupa de cama da neta. Se esqueceu que um dia havia errado, se esqueceu até de si mesma, ficou quieta e sentou-se no ônibus.
Pronto. 
Nada mais importava. 
Nada mais pesava. 
Nada mais havia de ser, porque nada mais havia.
Apenas um lenço branco navegando lentamente nas profundezas do mar do inconsciente, a sinalizava de forma contundentemente sutil que algo lhe passava desapercebido, que algo lhe estava perdido. Sentada do lado da janela do ônibus, sentia o corpo encostado no estofado, sentia o sol a aquecer suas mãos e seu colo enrugados, sentia a trepidação gostosa e o balançar ritmado do automóvel. Via as pessoas apressadas, subindo, descendo, sentando-se, levantando-se, falando, ouvindo, sendo. Os sons e as cores diversas formavam um ambiente caótico semelhante ao dos corais e algas policromáticas, sons de navios e turistas próximos à costa.
Do fundo, onde se encontrava, as cores e sons do raso eram opacas e distantes, como se nem pertencessem ao mesmo universo. Mas havia de se lembrar: pertencem, ainda estou aqui. 
Ainda que distante
Ainda que submersa
Ainda que sufocada
Ainda que quase não
Estava
E sol que entrava pela fresta da janela do ônibus errado lhe parecia tão certo. Aquecia sua mão de forma gentil e isso a fez sentir-se amada pelo universo. A luz dele dançava pelo ônibus graciosamente, formava padrões repetitivos saborosos de serem observados. O balanço do transporte era engraçado: ácido com uns e doce com outros, enquanto fazia cair e xingar os homens em pé, ninava os sentados.
E esses carinhos e graças que a vida parece insistir em fazer mesmo quando se está perdido, a fazia pensar que estar ali valia a pena, ainda que não soubesse onde.